23.12.20

23 de Dezembro de 2020 I NÁDIA DUVALL


ARTISTA. NÁDIA DUVALL

LOCALIZAÇÃO. OEIRAS

TÍTULO. O Beijo de Nidor

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O Beijo de Nidor


 Ainda me recordo com ansiedade o período da infância quando, ainda tão selvagens e pequenos, nos incutiam o medo do Apocalipse do ano 2000. Crescendo num mundo de crédulos era impossível distanciar-me desse terror em iminência. A alguns dias de chegar o dito ano, todos falavam do Fim do Mundo e com ele o fim de tudo o que conhecíamos. Os adultos bebiam, dançavam e beijavam-se como se fosse a última vez. Escondiam-se nos cantos, fugiam de carro e abandonavam os filhos. 

 

 As crianças observavam o panorama do que era o cenário do fim do mundo. Existia uma certa estranheza cinematográfica naquilo tudo. Os velhos permaneciam passivos pois a maioria já tinha conhecido a guerra e não eram capazes de conceber algo pior do que o que já tinham presenciado antes.

 

 Mas os filhos do mundo livre não conhecem o pavor e a angústia e por isso só lhes resta imaginar.

 

 Chegado o dia 2000 aguardámos expectantes. Um meteoro? A fúria de Deus? Um Tsunami? Uma Bomba Atómica? Um ditador louco? E continuámos a aguardar… uma hora, um dia, uma semana, um mês…

 

 Os dias foram passando e as pessoas foram perdendo o êxtase do fim do mundo. Regressaram à monotonia do dia-a-dia. Os velhos abanaram a cabeça sorrindo da estupidificação generalizada. Por outro lado, as crianças libertaram-se de uma angústia que nunca foi delas. Pensaram: “…talvez ainda dê tempo para brincar…”

 

 Infelizmente algumas deram conta que já eram adultas. 


 20 anos depois, com os olhos postos no mediatismo, no mau jornalismo e nos loucos que assumem o poder absoluto (talvez por essa mesma razão), surge-nos (num ângulo morto), a Pandemia Corona. 

 

 Muito longe do esboço apocalíptico do ano 2000 mas cruo o suficiente para sentirmos o Mal Humano que há tantos anos se alimenta da passividade, ignorância e egoísmo. 


 A destruição do planeta é cada vez mais veloz mas não a vemos por estarmos tão absortos apenas no chão que pisamos. A extrema direita ergue-se perante os ignorantes e o xadrez atómico é o serão dos multimilionários. 

 

 Estamos perante o triunfo do Vilão! 

 

 Com frieza afastámo-nos do que de facto nos destrói, iludidos com cenários seguros e privilégios em permanência. Assumimos a liberdade, a paixão, o céu aberto, o mergulho no mar, o toque e o Outro. Assumimos que a realidade era nossa e intocável. Assumimos a livre expressão! 


 Como a condição cultural e humana pode ser tão frágil….!

 

 Um ano a olhar pela janela, sentimos falta do Outro e do corpo. O nosso quase que nos escapa com o sonho da brisa. A impossibilidade de abraçar, do toque e de beijos aleatórios obriga-nos a olhar para o reflexo no vidro, e sabemos que a culpa também é nossa devido a um narcisismo quadrado que impossibilitou perspectiva. 

 

 O alheamento inverteu a realidade previamente assegurada. 

 

 Com o confinamento longe de corpos permeáveis e porosos, ouço pela primeira vez maravilhosas melodias de pássaros às 5 da manhã. Como nunca me dei conta?! Fiquei estupefacta com o Sintoma de Macaco Surdo e Cego de que eu própria sofria.

 

 Se por um lado, neste momento de isolamento social, o mundo que (re)conhecemos está mais longe de todos, por outro lado o mundo natural exala todo o seu poder, beleza e força. 

 

 As orcas vieram dizer-nos que fazemos demasiado barulho e demasiado lixo e defendem-se como nunca vimos.

 

 À janela, deixo a natureza consumir-me de exuberância, mas beijo a saudade do toque, do suor partilhado, da aventura do amor e da amizade. Recordo o Beijo de Rodin… agora numa realidade antagónica.  Chamo-lhe o Beijo de Nidor.


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