10.12.20

10 de Dezembro de 2020 I JOÃO CATALÃO


ARTISTA. JOÃO CATALÃO
LOCALIDADE. BRAGA


TÍTULO. Uma escada para o arco-íris 
(intervenção em janela interior)






 Participei em todas as edições do Calendário do Advento. E em cada uma delas anunciei a cor das anilhas dos pombos-correio em Portugal no ano seguinte. O que é o mesmo que anunciar as montanhas que desenham com as suas revoadas. Não é uma simples metamorfose poética. É saber que as paisagens que geramos são a nossa casa. São a nossa casa alargada. A janela de dezembro de 2012 foi um momento único para mim. Para além do cor-de-rosa das montanhas que se movem estava igualmente a anunciar o nascimento da Carolina. Desta vez não sei qual vai ser a cor das anilhas dos pombos-correio no próximo ano. Mas posso contar que este ano as anilhas são brancas como as batas dos médicos. Em contraste com 2019 em que eram amarelas. A cor com que ficam as folhas do gingko biloba antes do inverno. 2019 foi para mim um ano de mudança. Comecei a trabalhar na Utad em Vila Real. Que é também um jardim botânico. E a descobrir a cidade das montanhas geminadas no Caminho Interior de Santiago. Com amigos que têm como ponto de encontro a livraria traga-mundos. Em Vila Real apareceu um casal de cegonhas desgarrado. Que escolheu fazer ninho no Jardim da Carreira. No tronco de uma palmeira que não resistiu à praga mortífera do escaravelho. As duas posturas que as cegonhas fizeram até agora não foram bem-sucedidas. Na primeira as crias morreram no ninho e na segunda os ovos não chegaram a eclodir. Por baixo da palmeira morta há uma capela pequenina. Com uma imagem de Maria. Gostava que da próxima vez Ela estivesse atenta à nidificação das cegonhas. Embora reconheça que isso seja um pormenor insignificante face ao desequilíbrio e ao crescimento assustador da intolerância. Mas para mim é simbólico. É uma luz acesa numa porta ao longe. Como vê em Braga quem sobe ao fim do dia a rua de São Vicente. Era por ali que chegava antigamente à cidade a água das Sete Fontes. Estive um ano e meio em Vila Real e voltei para Braga no início do confinamento. Mas só recentemente fui lá pegar as minhas coisas. Tinha guardado dois galhos secos que caíram do ninho das cegonhas. Um deles quebrou entretanto na mudança. Gosto de imaginar que os galhos que recolhi atravessaram o céu de Vila Real carregados no bico das cegonhas. E que em algum momento estiveram alinhados com os contornos das montanhas do Marão e do Alvão que abraçam a cidade. Como a constelação do Dragão que guarda o Jardim das Hespérides. Que é bem capaz de ficar lá para os lados do Palácio de Mateus. Fomos a Vila Real com a Carolina umas semanas antes da minha mudança. Para ela ter uma ideia do lugar onde eu ia morar durante a semana. Quando andávamos a passear pelo centro histórico vimos um cartaz a anunciar uma peça de teatro infantil sobre a Odisseia. E decidimos de última hora ir ao teatro. Foi assim que na primeira viagem a Vila Real a Carolina assistiu à chegada de Ulisses a Ítaca! Uma Ítaca que para ela ficava do outro lado do mundo. Como se fosse a Austrália. Porque foi isso que ela sentiu e tanto a entusiasmou ao atravessar os quase sete quilómetros do túnel do Marão. Numa das minhas vindas semanais a Braga a Carolina deu-me uma pedra da praia pintada por ela. Para eu levar comigo para Vila Real. E contou-me que era uma escada para chegar ao arco-íris. Nesse tempo em que estive na universidade a trabalhar num projeto transfronteiriço fizemos três cartazes para eventos. Que tinham uma linha de montanhas em comum entre eles. E diferentes desdobramentos significativos. Um navio que cruzou os montes e foi parar à praça central de Vila Real. Uma constelação de cinco cavalos visível numa noite de dezembro. E um pombal tradicional de Trás-os-Montes em forma de ferradura. O que quis fazer agora para o Calendário do Advento foi dar continuidade a essa linha de montanhas. Que na mitologia particular da Carolina dividem o lado de cá e o lado de lá do mundo. Utilizei os galhos secos trazidos no bico pelas cegonhas. E uma moldura vazia que tinha ficado desaproveitada em casa. Para mim a linha de montanhas que tentei recriar com os galhos do ninho das cegonhas é uma linha que atravessa o futuro. O Miguel Torga escreveu que quem atravessa a montanha e chega a Trás-os-Montes encontra um reino maravilhoso. Eu acredito que quem atravessa as montanhas desenhadas pelas revoadas dos pombos-correio encontra a passagem para outra Ítaca. O que é preciso é uma escada pintada numa pedra por uma criança para lá chegar.


João Catalão, dezembro 2020


Sem comentários:

Enviar um comentário