24.12.13

Noite Feliz!


 Noite Feliz para todos os que seguiram entusiasmados as revelações deste Calendário do Advento'14 - "Aqui há Gente, Aqui há Histórias". desejamos que possam continuar a encontrar encanto neste janela da cidade de Braga e que para o ano possamos estar aqui de novo reunidos para descobrir por dia uma nova janela do próximo Calendário do Advento *

 para visitar até dia 6 de Janeiro nesta Rua da Cidade de Braga.


24 de dezembro I Janela AdEntrO


autor. Janela AdEntrO
título. vinte e quatro




 há precisamente dois anos, recriei pela primeira vez, nesta janela da cidade de Braga, um Calendário do Advento. o coração deste calendário continua a pulsar e pelo terceiro ano voltamos a estar aqui todos reunidos. vinte e quatro autores a habitarem cada uma das janelas deste Calendário do Advento que esteve, desde o dia 1 de dezembro, a sorrir para todos os que vivem, passearam ou simplesmente visitaram a cidade durante este mês. este Calendário que sorriu também para todos os vizinhos que o espreitaram à janela todos os dias. 


 um ORIGINAL, ÚNICO e CRIATIVO Calendário do Advento que recriado nesta janela da cidade de Braga brilhou de dia e de noite encantando os olhares mais atentos.

 um Calendário do Advento manifestado sobre a forma de 24 desejos. desejos estes que unificam esta vontade de inspirar os outros, de partilha de histórias ou simples apontamentos criativos. os autores contaram estas histórias à janela sob a forma de simples artefactos, concebidos ou não pelos próprios, e que no seu conjunto, nesta Instalação Colectiva à janela, recriaram pelo terceiro ano este Calendário do Advento. até dia 6 de Janeiro’14 estas janelas não têm hora para abrir ou fechar, estão sempre abertas para quem, da rua ou desse lado, a desejar conhecer e partilhar.

 assim como tem vindo a ser habito desde o dia 1 de dezembro, hoje revelamos esta última janela completando assim este Calendário do Advento "Aqui há Gente, Aqui há Histórias". hoje, dia 24 de dezembro, é o Projecto Janela Adentro, como forma de agradecimento a todos os que connosco colaboraram nesta iniciativa, que habita hoje esta janela. 

 um agradecimento a todos os que pela primeira vez abraçaram esta ideia. a todos os que desde então têm colaborado na concretização deste projecto. a todos os que partilham esta iniciativa dando-a a conhecer a rostos e olhares novos. a todos os meus vizinhos que ajudam a divulgar o que acontece nestas janelas. também em especial ao Senhor da Sapataria Mesquita Júnior por ter deixado subir ao seu primeiro andar para fotografar a janela do lado de lá. ao Senhor Narciso do Bazar aqui em baixo por emprestar vezes sem conta o escadote para das inúmeras vezes que subi e desci suspender todos os 24 objectos desta Instalação à janela melhorando também sempre que possível a leitura integral da mesma para todos os que a visitaram da rua. ao Senhor Barbosa que tem dado voz a este Calendário, respondendo à curiosidade de muitos dos que entram na sua loja a fazer perguntas. às pessoas que foram aparecendo para ajudar na montagem e nos preparativos. aos habitantes desta janela que desenvolveram actividades para realizarem aqui mesmo, no dia das suas janelas, contribuindo para uma maior dinâmica do Espaço. Janela Adentro e maior envolvência e adesão das pessoas.

 é certo que este Calendário do Advento existe porque um dia o imaginei e acreditei que reunindo diversos autores poderíamos construir esta ideia. Ele existe porque foi suficientemente capaz de inspirar as pessoas a colaborarem com Ele. Ele existe porque as pessoas o habitam contando histórias à janela. Ele existe porque também tu, que estás desse lado, o vens visitar muitas vezes. quer seja de todas as vezes que passas realmente na Rua de Santo António ou com um clique desse lado para chegares até aqui. 

 são vários lugares ligados a este mesmo lugar. são vários autores ligados a esta janela. e simbolicamente neste dia 24 de dezembro temos dois novelos vermelhos ligados pelo mesmo fio de que são feitos. um suspenso nesta janela. outro suspenso do lado de lá. suspenso sobre a porta desta casa da cidade. dois novelos ligando a janela à porta. a janela que te conta histórias. a porta pela qual deverás entrar para conhecer este lugar. dois novelos que ligam estes lugares. o interior e o exterior. o lado de cá da janela e tudo o que acontece do lado de lá. tudo o que acontece nesta rua da cidade. dois novelos que ligam muitos intervenientes. estes autores que contam estas histórias através dos objectos que partilham nesta Instalação Colectiva e todos os que recebem essas histórias do lado de lá destas janelas. este fio vermelho, simboliza assim a vida que acontece nesta janela e que liga tantos rostos. tantas histórias. são vários lugares ligados a este mesmo lugar. são vários autores ligados a esta mesma janela. são vários intervenientes a quem este agradecimento tem de ser feito e é hoje aqui feito. a todos eles OBRIGADA e esperamos por vocês aqui mesmo neste lugar daqui por um ano.

[nos últimos dias alguns objectos mudaram de lugar. os olhares mais atentos devem ter percebido essas mudanças. prometemos tirar mais umas fotografias do Calendário do Advento como se encontra neste momento de verdade porque esta imagem já não é o que era!]

23.12.13

23 de dezembro I Elisa Lima


autora. Elisa Lima
título. as 1001 estórias




 Este ano trouxe a espreitar à janela um bule de café vindo das Arábias, mais precisamente da Arábia Saudita, onde vivi os últimos 2 anos.
 Nesta sina de nómada que já prevalece há 15 anos, este capítulo foi sem dúvida aquele onde o choque cultural foi de facto isso mesmo, um choque, que nos paralisa por momentos e não sabemos mais como proceder. Desaprendemos tudo, voltámos à estaca zero, e todas as nossas referências culturais deixam de fazer sentido.

 Esse foi o 1o choque. Mas houve um 2o e com um impacto para mim muito mais profundo. Para alguém de “sangue cigano” como eu, que se identifica com esses povos desapegados a um único lugar, estava à espera de encontrar muitos mais vestígios desse mesmo sangue por lá, nessas suas origens. No entanto, a tradição e os valores do passado estão cada vez mais enterrados por baixo dum deslumbramento com culturas ocidentais onde a ostentação e o poder material é, muito desapontadamente, o que comanda a vida. E um povo que já transpirou vitalidade, foi forte, humilde e desapegado, está a tornar-se num povo preguiçoso, gordo, altivo e extremamente sedentário.

 A raça humana no entanto, é uma espécie só e por baixo de todas essas camadas externas estão sempre preocupações idênticas e a luta pela vida e pela sobrevivência. 
Encontrei por isso e também muita generosidade, inocência, simplicidade e claro, retribuída curiosidade.

 A liberdade de expressão e da arte está aos poucos a instalar-se nesta cultura Árabe moderna e tive o privilégio de poder ter assistido à 1a Jeddah Art Week de sempre no país, onde várias galerias de arte abriram, debates aconteceram, e por fim se respirou um aliviante ar de mistura entre o antigo e o novo.
 A revista de Artes e Cultura chamada Oasis e para a qual escrevo, continua a publicar artigos muito interessantes e que testemunham os princípios de mudanças muito positivas e revolucionárias nesta cultura.

 Três ideias que me vêm à cabeça quando me lembro de Riade?
Luz imensa, sensação de espaço, cultura monocromática: branco para os homens, preto para as mulheres e bege em todo o redor, no deserto, nos edifícios e nas decorações interiores.

texto: Elisa de Lima




contacto. WEB-PAGE

22.12.13

22 de dezembro I Joana Ferreira e Joana Vilaverde


autor. Joana Ferreira e Joana Vilaverde
título. Caça Sonhos


 quando por aqui recebemos estas duas Educadoras Expressivas para apresentarem uma proposta de parceria com o Espaço.Janela Adentro, decidi convidar o Projecto Cor-de-Mim, que me tinham acabado de apresentar, para habitar uma das janelas deste Calendário do Advento. na sequência da possibilidade de virmos no futuro a apresentar propostas de oficinas de Educação Expressiva, aqui mesmo, resolvi propor às autoras para habitarem uma das janela deste Calendário do Advento. o desafio seria ligar o objecto que iriam criar propositadamente para este evento a uma oficina de Educação Expressiva a realizar exactamente no dia que iriam habitar neste Calendário. assim sendo, hoje dia 22 de dezembro, pelas 16h30, vai realizar-se uma Oficina de Educação Expressiva, no Espaço.Janela Adentro, orientado pela Joana Ferreira e pela Joana Vilaverde. 
 a todos os que se inscreveram esperámos por vocês aqui mesmo, neste lugar, com a certeza que se vão divertir connosco. até já.


[objecto. caça sonhos]


 JanelAdentro! JanelAdentro! JanelAdentro! Palavras que proferiu em voz alta quase gritada, na esperança de que algo acontecesse. Por momentos, parece ter passado pela sua cabeça que, à semelhança do “Abracadabra”, esta estratégia pudesse funcionar e lhe permitisse na Janela entrar…

 Mas porquê? Entrar pela porta, convenhamos, é muito mais normal, mais fácil! (Lá estás tu, Joana, a voar para o mundo dos sonhos… no mundo real entra-se pela porta, não pela janela!).

 Normalmente, as portas são maiores, mais acessíveis, mais práticas. Já as janelas tendem a ser mais pequenas, a estar mais altas… e sempre nos disseram que é falta de educação entrar-se por aí! Mas porquê? Quem é que instituiu esse privilégio superior às portas em detrimento das janelas? Só vejo uma explicação: para entrarmos pela janela temos de ser mais ágeis e livrar-nos de todos os pesos que nos seguram os pés e nos impedem de subir mais alto. Precisamos de nos livrar do excesso de carga da “bagagem de porão”, de tudo o que nos acorrenta e impede de avançar. Até mesmo da rede e da bolha que nos protegem! Sim, sim…também neste aspeto a porta parece um acesso mais fácil! Até é habitual encontrar-se à entrada das portas um tapete onde podemos limpar os pés e sacudir todas as poeiras indesejadas. Porquê então insistir entrar pela janela? Ainda por cima no primeiro andar! Ora, se o convite foi da JanelaAdentro, é por aí que vamos entrar! (partilhou ela com a outra Joana).

 Mas, quem é que por sua vontade, vai andar despido e desapegado, sujeitando-se a esse desconforto quando poderia simplesmente sacudir os pés e dar um passo em frente para entrar? Ora, a ideia é mesmo essa: contrariar os “normalmentes”, o “mais cómodo”, o “porque sim” e o “porque fica bem” para podermos descobrir quem é que fica de nós quando nos libertamos desse excesso de carga da bagagem que nos protege e condiciona.

 Quanta “tralha” material e emocional carregámos connosco e como isso nos cansa!!!

 Depois de várias tentativas de escalada, algumas com os pés bem assentes em terra, as Joanas perceberam que o essencial está em cada um de nós e que essa libertação permite chegar mais longe, onde queremos realmente estar.

 Não importa se é pela porta ou pela janela adentro, o importante é mesmo entrar ou sair! E na falta de um tapete usa um caça-sonhos, esse filtro que só deixa entrar as coisas boas.
E entra tu. Reconhece-te. Encontra a tuas cores e diz então: “Olá, muito prazer em conhecer-me!”
texto. Joana Ferreira e Joana Vilaverde



contactos. EMAIL

21.12.13

OFICINA com as VIZINHAS da Janela 22 [Calendário do Advento]

 que VIZINHAS? perguntas TU. este mês de Dezembro como já sabes temos muitos habitantes à janela. são moradores do Calendário do Advento'13 - "Aqui há Gente, Aqui há Histórias" recriado nesta janela da cidade de BRAGA. ora bem, estas VIZINHAS da janela do dia 22 vão fazer uma OFICINA aqui mesmo, dentro desta janela. antes de qualquer entusiasmo da tua parte e vontade de entrar, quer seja pela porta ou pela janela, sugerimos a leitura atenta dos PRÉ-REQUISITOS e dos EFEITOS SECUNDÁRIOS desta actividade. se mesmo assim quiseres entrar Atenção que a ENTRADA é Livre mas as VAGAS são LIMITADAS.


21 de dezembro I João Catalão


autor. João Catalão
título. elma


[ imagens do Espaço. JanelaAdentro, no mês de Novembro'13, no decorrer da Instalação à Janela // Upwelling "Homing by Sea - Chegar a casa por mar", do autor João Catalão]

[upwelling / ressurgência 2013]


 Stella Polaris. A última estrela na cauda da Ursa Menor. No hemisfério norte o mundo gira em torno deste ponto no céu. Stella Polaris é o nome de um navio norueguês submerso no mar do Japão. O navio Stella Polaris é o centro poético de outra constelação. O meu mundo gira em torno dessa constelação. Para os gregos a Ursa Menor era o Jardim das Hespérides. Guardado por um Dragão. O Dragão também é uma constelação. O Dragão e o Jardim das Hespérides ficam no antigo Quartel da GNR. O chão do quartel foi transformado num mapa do céu. Héracles, Hércules para os romanos, foi ao Jardim das Hespérides com a tarefa de trazer as maças de ouro que Gaia ofereceu a Hera como prenda do casamento com Zeus. No caminho libertou Prometeu que tinha roubado o fogo aos deuses para o oferecer à humanidade. Por sugestão de Prometeu, foi Atlas quem colheu as maças de ouro enquanto Héracles segurava a abóbada celeste. Atlas é um titã. É irmão de Prometeu e pai das Plêiades e das Hespérides. Atlas está na Praça da Fonte do Mundo em São Vicente. Prometeu fica no Campus Universitário. Héracles está na Sala das Abelhas do Museu dos Biscainhos. Prestes a matar com o veneno da Hidra o centauro Nessus que raptava Djanira. Héracles prometeu casar com Djanira quando esteve em Hades, o reino dos mortos. Era o seu décimo segundo e último trabalho para Euristeu. O reino dos mortos fica no Museu de Arqueologia. Há uma passagem para o reino dos mortos na sala de leitura da Biblioteca Lúcio Craveiro. São precisas duas moedas para voltar de lá. A segunda moeda só os deuses ou os anjos a podem dar.

 Plantei em Braga algumas árvores. Em locais livres das praxes e das podas radicais. Alguns gingkos sobreviveram à bomba de Hiroshima. Um diospireiro sobreviveu à bomba de Nagasaki. Os descendentes do diospireiro que sobreviveu à bomba de Nagasaki estão a ser plantados por crianças em vários pontos do mundo. Há dois no Porto no jardim do Palácio de Cristal. O Porto é uma cidade geminada com Nagasaki. O diospireiro de Nagasaki é uma constelação em expansão. A primeira árvore que plantei em Braga foi um castanheiro-da-índia. A semente trouxe-a de Serralves. Nagasaki e Serralves fazem parte do Banco de Sementes de Lugares a Não Perder. Plantei cinco romãzeiras na janela da minha casa em Lisboa. Fui buscar a romã ao jardim do British Council. Cada semente que plantei era um lugar. Nasceram três. Londres, Braga e Lisboa. Uma anilha de pombo-correio foi fazer um risco azul a Granada. Granada quer dizer romã. A romã é um fruto cheio de lugares. O retorno a casa a partir de Granada é o Caminho de Garnata. Garnata era o antigo nome de Granada.

 O loureiro do jardim dos Biscainhos toca a janela da Sala do Estrado. Decorre aí o concílio dos Deuses. Os Deuses decidem no concílio destruir a humanidade numa grande inundação. As mulheres e os homens vão ser depois recriados a partir de pedras atiradas sobre o ombro por Pirra e Deucalião. Pirra e Deucalião salvaram-se porque construíram uma barca. Foram avisados a tempo por Prometeu. Deucalião era filho de Prometeu. O loureiro é a ninfa Dafne que para escapar à perseguição de Apolo se transformou numa árvore. O momento inicial da transfiguração está congelado em mármore no Museu Nogueira da Silva. O original de Bernini está em Roma. Braga foi Bracara Augusta. Os eixos da cidade romana cruzam-se na Biblioteca Lúcio Craveiro. Perto da passagem para o reino dos mortos. Foi o primeiro lugar onde emergiu a minha constelação de pombos de telhado. Os pombos de telhado são como pontas de icebergues. São como ilhas à espera do mar. A assinatura dos pombos de telhado na passagem para o reino dos mortos era identificável na contraluz. “Da luz há de vir a luz”. O enigma é do “Segredo do Licorne”. Foi resolvido pelo Tintim. Tintim ficou preso num livro inacabado. Querem transformá-lo numa obra de César. César é o artista francês das compressões e das expansões. Em 2002 inscrevi uma constelação na cidade a partir do pombal do Museu dos Biscainhos. A constelação inscrita na cidade é uma expansão. A expansão é a fase voluntária da respiração. A Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva é um dos pontos dessa constelação. A revoada é um colectivo pessoal. A constelação inscrita na cidade é uma assinatura do modo como se move. O pombal do Museu dos Biscainhos lembra um pagode oriental. O interior do pagode gira em torno da montanha sagrada Kailash. Há outras civilizações que giram em torno de Kailash.

 A Estrela Polar fica na projecção do eixo da terra. Assinala um ponto que se move lentamente em precessão. A Estrela Polar é a estrela mais próxima desse ponto no céu. A Estrela que é hoje a Estrela Polar não era há 5000 anos a Estrela Polar. Odisseu, Ulisses para os romanos, empreendeu uma longa aventura marítima de regresso a casa depois da guerra de Tróia. Os pombos-correios são especialistas em encontrar o caminho de casa. Os pombos-correios só precisam encontrar o caminho de casa quando são levados para longe de casa. Os meus pombos de telhado conseguiram encontrar o caminho de casa a partir de Vilnius na Lituânia. As revoadas de pombos-correios à volta do pombal desenham montanhas na paisagem. As montanhas que desenham passam a ser a sua casa.

 Ao lado do gingko biloba que plantei no jardim dos Biscainhos fica uma Biblioteca de Pássaros. Goethe escreveu um poema sobre a folha do gingko para Marianne von Willemer em 1815. As folhas do gingko que inspiraram Goethe continuam coladas à folha onde escreveu o poema. O poema de Goethe é uma analogia entre a bilobalidade da folha do gingko e a coexistência da fusão e da individualidade na relação. Ando há vários dias com uma folha do gingko que plantei no museu dentro do meu caderno. Coloquei a folha do gingko no caderno para falar da minha casa. O gingko dos Biscainhos nasceu de uma das sementes que plantei na varanda. Não sei se é filho do gingko da Casa do Passadiço ou do gingko do Jardim Botânico de Lisboa. As primeiras folhas que guardei do gingko dos Biscainhos estão a marcar as páginas de um livro do José Gomes Ferreira. José Gomes Ferreira foi cônsul na Noruega. Foi lá que conheceu Ingrid Hestnes. Foram depois viver para Lisboa. José Gomes Ferreira deu voz ao poeta militante. Ingrid Hestnes desapareceu deixando um rasto muito ténue. A Biblioteca de Pássaros do Museu dos Biscainhos fica no braço de um castanheiro-da-índia. Já plantei na varanda algumas sementes do castanheiro-da-índia que tem no braço uma Biblioteca de Pássaros. As árvores que nasceram na varanda estão à espera de um jardim para morar.

 Inscrevi uma constelação de retorno a casa nos nós da madeira da minha mesa de trabalho. Nos berlindes espelhados que inscrevi na mesa as minhas pernas desdobram-se em asas. As asas da minha constelação de retorno parecem desenhos feitos por crianças. Descobri este ano que tenho uma constelação idêntica de sinais na perna. A última estrela da constelação de sinais toca um risco solsticial. O risco solsticial na minha perna é a cicatriz de um naufrágio. O naufrágio do navio argentino Camboinhas numa praia de Niterói. Niterói fica do outro lado do Rio de Janeiro. Por causa do naufrágio do Camboinhas o nome do navio é hoje o nome da praia. Foi um destroço do Camboinhas na maré vaza que provocou a cicatriz que tenho hoje na perna. Escondida entre Camboinhas e Piratininga fica a praia do Sossego. Em frente a Camboinhas ficam as ilhas do Pai, da Mãe e da Filha.

 O cargueiro norueguês Foldenfjord emergiu da ressurgência tipográfica no jardim da livraria Centésima Página. A ressurgência é um fenómeno oceânico. Sedimentos inertes de águas profundas são conduzidos à superfície. Ao entrar em interacção com a cadeia alimentar geram zonas particularmente ricas de vida marinha. A ressurgência para mim é uma metáfora poética. E a persistência de agigantamento do Rio de Janeiro. O agigantamento do Rio de Janeiro é uma graça concedida. É um risco solsticial invisível. O agigantamento do Rio de Janeiro é o meu eixo solsticial do assombro. A livraria Centésima Página fica na Casa Rolão. Na Casa Rolão funcionou durante mais de quarenta anos a tipografia do jornal Diário do Minho. A Casa Rolão é um centro de ressurgência. O Foldenfjord foi o terceiro navio da companhia de navegação Norwegian America Line a ser baptizado com o nome desse fiorde. Todos os navios da companhia norueguesa tinham por tradição o nome de um fiorde. Um fiorde é um braço de mar. Quando adoptei o nome Foldenfjord tornei-me uma pessoa-navio. O Foldenfjord nasceu no ano de 1953 em Gutemburgo na Suécia. O Stella Polaris nasceu na mesma cidade em 1917. Os dois navios foram pintados em tela por Lass Andersen. O Foldenfjord foi retratado por Lass Andersen em alto mar. O Stella Polaris foi retratado no Rio de Janeiro. Quando o Foldenfjord foi desmantelado em Hong Kong chamava-se New Ocean. O Foldenfjord é o meu eixo solsticial do labor. Antes da ressurgência do Foldenfjord não havia mar em Braga. Trazer o mar à cidade foi a obra que faltou realizar a Santos da Cunha quando foi presidente da Câmara. Às quatro semanas de gestação o embrião humano tem outra elasticidade. Tem guelras como os peixes. E um rasto de estrelas como cauda. A ponta da cauda é o princípio do mundo.

 A ressurgência do Elma teve lugar numa janela da Rua de Santo António. O Elma é o renascimento do Foldenfjord. É o nome perdido. O Elma é o resultado da persistência da infância e do mar na retina. Para o Elma o Stella Polaris e o Foldenfjord são o princípio do mundo. O ramo de açucena é um dos atributos simbólicos do Santo António. É uma referência mística ao casamento de Maria e José. O casamento de Maria e José está representado numa pintura em madeira no tecto da Sé. O fecho da abóbada é um anel. No meio ficam as notas e as figurações escultóricas do órgão de tubos. Quem olha para cima não imagina que está debaixo de quatro oceanos.

 Em Dezembro há uma ressurgência de frutos na Capela de São Geraldo. O milagre dos frutos de São Geraldo é a junção do solstício de verão com o solstício de inverno. No exterior da Igreja da Misericórdia há uma representação prospectiva da visitação. A visitação da Igreja da Misericórdia é uma composição solsticial. No mirante da Graça eu via-te e tu não me vias. No mirante do Leão nós víamo-nos um ao outro. Estes eixos solsticiais estão no jardim formal do Museu dos Biscainhos. Na rua de Guadalupe alguém escreveu os nomes de Gandhi e Kurosawa. Em frente às esculturas da visitação há uma oliveira que foi ali colocada em Março de 2003. No mesmo dia em que plantei a minha primeira árvore em Braga. A oliveira foi a oferta vitoriosa que a Deusa Atena fez à cidade de Atenas. É por isso que a cidade se chama Atenas. A pomba que Noé libertou para saber se já tinham baixado as águas do dilúvio regressou com um ramo de oliveira. Um dos meus pombos de telhado regressou a casa com uma fita verde do Senhor do Bonfim da Bahia. É a cor das anilhas dos pombos-correios em 2014.

 O Foldenfjord e o Stella Polaris formam um par solsticial. Como os gémeos Pollux e Castor. A pesagem do sol e o sol de Santo Isidro. O verão indiano e o verão de São Martinho. A assinatura solsticial no chão de pedra do Museu dos Biscainhos é a assinatura solsticial de Malta. As fontes hidrotermais de Rainbow ao largo do mar dos Açores têm a mesma assinatura simbólica da relação entre a terra e o céu. Rainbow fica a mais de dois mil metros de profundidade. Rainbow é um ponto de alavanca de Arquimedes. E de Moulinsart. Um botão que não floriu em Lisboa foi florir na cerimónia de fechamento do arco da Ponte de Mostar. A Ponte de Mostar foi bombardeada durante a guerra da Bósnia. Mostar é um ponto da minha constelação de retorno. A fotografia do jogador de basquetebol croata George Mikan com a mulher e o filho recém-nascido ressurgiu no jardim da Casa Rolão. Na imagem em negativo que encontrei na terra o George Mikan parecia o meu pai. A ressurgência do meu pai como George Mikan no jardim da livraria anunciou a ressurgência do navio Foldenfjord. A cerimónia de baptismo da ressurgência do mar onde emergiu o Foldenfjord foi feita com papoilas e estrelas do Jura. O Jura é um lugar na França onde um dia já foi mar. A cerimónia de baptismo do mar foi palco da ressurreição de Lázaro Chichorro. Lázaro Chichorro era um melro de segunda geração. Este texto é uma espécie de rosa de Jericó. As águas do Jura são capazes de transformá-lo numa paisagem tipográfica. Se fosse um livro seria um livro de colagens.

 Um Rei Mago testemunhou a ressurgência do Elma na rua de Santo António. O Rei Mago desgarrado seguiu o rasto do Elma dentro de um bolo-rei. A minha mãe trouxe-me uma pedra de lugar. Embrulhou-a num papel onde escreveu a direcção. “De onde Moisés avistou a Terra Prometida”. George Mikan emigrou para os Estados Unidos da América. A fotografia que encontrei no jardim da livraria foi publicada a 29 de Abril de 1950. O original tipográfico em vinil não tinha qualquer identificação. Quando fui pesquisar ao arquivo de Braga o volume encadernado com o jornal de 1950 estava pousado em cima da mesa ao lado. O nome Elma foi um baptismo acidental. O nome veio escrito numa caixa de papelão de uma loja de ferragens. Em turco Elma quer dizer maça. Há quem diga que as maças de ouro do Jardim das Hespérides eram afinal laranjas. Em alguns países as laranjas chamam-se portugal. O Elma é um cargueiro de histórias. O navio norueguês Oris transportou 3 milhões de pés de oliveiras de Lisboa para o México em 1950. A notícia veio no jornal da terra que funcionava na Casa Rolão. A história dos pés de oliveira transportados pelo Oris faz parte do carregamento de histórias do Elma. O Elma é um navio feito de caixas de papelão. Os mundos que este navio carrega só cabem num navio de brincar. As tangerinas carregam árvores de tangerina ocultas no miolo. Algumas tangerinas em vez de árvores abrigam anjos ou bailarinas. O nome que tinha escolhido para o Elma era Sombra-Clara. Foi com esse nome que fez escala na Casa do Professor. Sombra-Clara foi o nome que dei ao pombo-correio branco e castanho que tenho ao ombro numa fotografia tirada no Lobito pelo meu pai. Na altura o Sombra-Clara estava com as rémiges cortadas. As penas rémiges são os remos das aves. A chegada do navio à rua de Santo António é a chegada a casa tantos anos depois do pombo-correio Sombra-Clara. O navio baptizou-se a si próprio como Elma. Estou a pensar ainda se rebaptizo ou não o Elma como Foldenfjord.

 A primeira fotografia que tirei, com a câmara do meu pai, foi a uma pedra cheia de cristais de quartzo. Fiquei fascinado com a formação dos cristais azuis de sulfato de cobre. A minha mãe fez essa experiência no laboratório da escola. Os cristais de sulfato de cobre têm problemas de sobrevivência com a humidade. Tentei fazer evaporações de várias misturas insólitas. Queria descobrir um cristal raro. A evaporação do sumo de laranja não produz cristais cor de laranja. Foi uma das experiências que fiz em casa. O sumo de laranja permite escrever mensagens com tinta invisível. Partes desta carta estão escritas com sumo de laranja.

 Uma fonte entre os pássaros e a casa cristaliza na diversidade. Registei essa frase da minha primeira exposição num círculo de metal tipográfico. O eixo de cristalização era um eixo de dobradiça. E organizava revoadas de fotografias num campo magnético. As revoadas de fotografias no campo magnético eram um andamento de montanha para voos de pássaro. O eixo de dobradiça chama-se fiel por causa do anel que tem no meio. Foi a partir do anel do eixo de dobradiça que deduzi a fórmula simbólica da elasticidade. A elasticidade é a outra face da identidade. Da mesma forma que a energia é a outra face da matéria. A identidade é multiplicada pela diversidade de interligação ao quadrado. A diversidade de interligação ao quadrado tem o mesmo efeito da velocidade da luz. Uma pequena fracção de identidade contém uma desproporcional elasticidade de presença.

 O Lobito foi o lugar para onde o meu pai me levou a mim e ao meu irmão quando nos veio buscar de surpresa a Braga. Tinham-nos deixado na casa da minha tia no Porto a terminar o ano escolar. Eu estava na segunda classe. Foi nessa altura que enviei ao meu pai uma carta com um desenho de navios cheio de gaivotas. Desenhei a constelação de gaivotas com os mesmos vês com que me transformei em revoada na minha mesa de trabalho. Essa composição foi o meu único desenho infantil que sobreviveu às mudanças agudas de casa. A minha tia não nos deixou embarcar para Angola. O meu pai teve de nos vir cá buscar. No caminho descobrimos Lisboa. Lisboa era Olisipo. Dizem que é por causa de Ulisses. Foi tudo muito rápido. Dois dias depois do meu pai chegar estávamos todos juntos no Lobito. Já cheguei muitas vezes a Lisboa. A frase é o início de um livro suspenso. Este início plantado aqui no meio é do Jardim dos Começos. Já tinha tantos inícios não continuados que resolvi criar um jardim com eles.

 Muitos dos vestígios tipográficos encontrados no jardim da livraria eram fragmentos de texto do jornal. As linhas de texto eram uma inovação na época. Com 702 linhas de texto escrevi a casa da minha mão. A casa da minha mão é uma mutação. Cada conjunto de seis linhas era um hexagrama do I Ching. O conjunto de linhas de texto organizadas em hexagramas era uma espécie de genoma da memória pessoal. Pão com fome comido à leão na cama. Pão com fome era uma especialidade da casa da minha mãe. Pão com fome era pão sem nada que a minha mãe levava para as viagens. O Liken é um pombo rabo de leque branco que apareceu um dia no Cais das Colunas em Lisboa. O nome Liken é a junção de dois hexagramas do I Ching. O Aderir e a Montanha. O Liken reapareceu anos depois em Braga no Largo das Carvalheiras. No Largo das Carvalheiras há uma clarabóia que é também uma linha de hexagrama. O cristal de clarabóia era um dos tesouros adormecidos que o Xavier carregava no bolso. O Xavier era o menino da Floresta de Berlinde. Liken foi o primeiro nome do Stella Polaris. Xavier foi o primeiro nome do Foldenfjord.

 Estou a reaproximar-me do momento em que descobri Lisboa a caminho do Lobito com o meu pai e o meu irmão. Compreendi recentemente que não tinha ainda voltado verdadeiramente da longa viagem iniciada nesse resgate paternal. O meu pai morreu num acidente de carro em Portugal no ano de 1988. Eu estava no Rio de Janeiro. O meu pai tinha-nos levado para o Brasil dez anos antes. Era suposto ele voltar ao Rio de Janeiro poucos dias depois de viajar para Portugal em 1986. Nunca mais o voltei a ver. Lembro-me que lhe dei quando embarcou um chaveiro com uma pequena hélice dourada de latão. Eu tinha um chaveiro com uma hélice igual. Para mim nesse momento uma hélice era o oposto de uma âncora. O meu pai estava com o chaveiro em forma de hélice de navio quando adormeceu ao volante do carro. Estava quase a chegar a casa. Foi o meu irmão quem me deu a notícia por telefone.

 O Papa Francisco ganhou uma 4L branca usada. A 4L do Papa é igual àquela em que o meu pai teve o acidente de carro. Há cerca de dois anos que vive em Braga uma família de gaivotas. É um sinal da chegada do mar à cidade. Uma gaivota na chaminé da Capela Sistina anunciou a chegada do Papa. Pouco antes do acidente recebi uma carta muito longa do meu pai. Recomendava-me o filme O Sacrifício de Andrei Tarkovsky. A não perder. A expressão que não conhecia ficou-me colada. No filme O Sacrifício há uma casa e uma 4L branca incendiadas. De vez em quando sinto na pele os efeitos da queimadura distante de um coral. Faz-me lembrar um episódio da aventura do Tintim na Lua. O meu pai vinha de Lisboa e assistiu ao filme O Sacrifício em Pombal. Lembro-me que na carta falava da árvore seca que gestos repetidos de cuidado fariam reviver. E no freixo que é a última árvore a despertar do inverno. O meu pai não conheceu o filme Paisagem na Neblina do realizador grego Theo Angelopoulos. O filme foi feito no ano em que ele morreu. Conta a viagem de duas crianças em busca do pai que nunca viram. A mãe tinha-lhes dito que o pai vivia na Alemanha. O filme de Angelopoulos termina com uma árvore como o filme de Tarkovsky. Uma árvore isolada como a que está no alto da colina em Guimarães. E que é visível de quase todos os pontos da cidade. A árvore do filme Paisagem na Neblina é a resolução poética da impossibilidade do encontro. É um farol na luz. Como o Mosteiro de São Martinho de Tibães. Há palavras que carregam outras palavras na barriga. O meu pai renasceu como árvore de tangerina.

 Os filmes riscam a noite em estranhas rotas migratórias. Deixam por vezes uma breve sombra na lua. Theo Angelopoulos deixou um filme inacabado. Chamava-se O Outro Mar. O meu outro mar é o mar da ressurgência. O mar dentro de um livro. Se fosse um livro seria o Livro de Lindves. Vivido antes de ser escrito. Escrito antes de ser vivido. Lindves é um ciclo de metamorfoses. Principiou com duas pequenas pedras sobrepostas trazidas dos extremos sul e oeste da Noruega. Lindesnes e Vestkap. Com o Livro de Lindves tornei-me uma pessoa-livro. A hélice do Livro de Lindves é um astrolábio.

 O filme O Sacrifício foi filmado na Suécia. O país onde nasceram os navios Stella Polaris e Foldenfjord. O Foldenfjord é um cargueiro. A Stella Polaris é um navio famoso de passageiros. Sueco é a língua em que reconheço hoje a voz do meu pai. Também o reconheço às vezes na minha tosse.

 Trouxe um novo chaveiro quando voltei de Londres. Ir para Londres foi uma forma de renascimento. Passei a ter duas datas de aniversário. Não me lembro onde perdi o chaveiro que trouxe de Londres. Devo tê-lo semeado acidentalmente em Braga. A constelação que inscrevi na cidade parece a cabeça do Milu que eu tinha no chaveiro. A constelação é uma árvore. É um centro em movimento.

 Quando o meu pai nos levou para o Rio de Janeiro ficamos três semanas hospedados no Mosteiro de São Bento. O acolhimento no Mosteiro de São Bento aconteceu por causa do nome Acciaiuoli do meu pai. Era o nome do abade do mosteiro. Até bem pouco tempo o nome Acciaiuoli estava escrito Acciainoli nos meus documentos. Foi consertado este ano na conservatória da maternidade em Braga quando nasceu a Carolina. Ao ver como a Carolina estende os braços percebi que o Cristo Redentor tem os braços abertos para que lhe peguemos ao colo.

 Quando voltei de Lisboa em 2001 trouxe mais uma vez um chaveiro. Era o terceiro chaveiro simbólico de um navio que ainda não conhecia o nome. O primeiro navio Foldenfjord era um petroleiro. Foi torpedeado por um submarino japonês. O segundo Foldenfjord naufragou na costa portuguesa. Vinha da Itália carregado de carvão. O carvão que carregava era um buraco negro. O terceiro Foldenfjord sou eu. O chaveiro que trouxe de Lisboa chamava-se Loop/U-turn. O nome vinha escrito em Francês e em Inglês. O chaveiro que trouxe de Lisboa era uma chave de retorno a Lisboa. Como os selos de viagem do Sítio do Pica-pau Amarelo. Perdi o chaveiro no caminho entre a casa da minha mãe no Carandá e a minha casa em São Vicente. Percebi depois que a perda do chaveiro era uma indicação de urgência. A urgência da ancoragem. No mesmo percurso em que perdi o chaveiro milagraram cristais entre as pedras do pavimento. Não é uma metáfora. O fenómeno aconteceu realmente. Passam por ali ocultas as águas das Sete Fontes. Milagrar é uma forma de ressurgência inventada pelo Manoel de Barros. Os trevos de três folhas não dão sorte. Dão flores amarelas. Os trevos de três folhas são capazes de milagramentos como as violetas do Manoel de Barros. Galho seco não é água que passarinho não bebe. Um jardim abandonado é capaz um dia de milagrar navios. O amanhã das palavras são as palavras que respiram.

 A letra perdida do chaveiro de Lisboa serviu para o conserto inesperado do meu nome na conservatória. A luz na porta da Igreja de São Vicente vê-se ao longe do fundo da rua. A minha casa fica atrás. Na rua Nossa Senhora da Luz. A primeira coisa que levei para a minha casa foi uma imagem antiga de família do Santo António. Realizei o religamento poético da minha casa no dia do santo casamenteiro de Lisboa. O livro de colagens transformou-se no Livro de Lindves. 2 de Fevereiro é o dia de Nossa Senhora da Luz. É a Festa das Luzes e da promessa da primavera no calendário pagão. No Brasil é o dia de Iemanjá. No filme O Feitiço do Tempo Bill Murray fica preso no dia 2 de Fevereiro. À espera da neve que nunca chega no dia seguinte. Deu tempo de lhe nascer um ninho de pássaros no cabelo. Como no poema de Joyce Kilmer. Nevou a 3 de Fevereiro de 2011 na Casa Rolão. No início de um espectáculo de dança. A neve era papel branco picado. Para mim era neve de verdade que caía.

 Um leão de brinquedo que vinha no detergente da roupa no Lobito foi parar dentro do filme Asas do Desejo de Wim Wenders. Na Alemanha o filme Asas do Desejo chamou-se Anjos sobre Berlim. Assisti pela primeira vez ao filme na Mostra de Cinema de São Paulo. No ano do acidente do meu pai. O filme conta a história de um anjo que se apaixona pela trapezista do circo Alekan. O anjo que se apaixona pela trapezista do circo é a uma das encarnações de Bruno Ganz. Bruno Ganz chegou a Lisboa de navio no filme Cidade Branca. E habita agora o último filme de Theo Angelopoulos. Em Berlim os anjos reúnem-se na biblioteca. Em Berlim os anjos e os ex-anjos estão por toda a parte. Depois da queda do muro em 1989 o Wim Wenders voltou a Berlim para filmar os anjos sobre a cidade reunificada. Alekan que era o nome do circo no primeiro filme passou a ser nome de navio no filme seguinte. Alekan é o nome de uma das estrelas da minha constelação inscrita na cidade. Fica na antiga livraria Centésima Página em São Vicente. O edifício da antiga livraria Centésima Página foi construído sobre um quintal onde brinquei em criança. Lembro-me que o quintal cheirava a erva-doce. Nasci em Coimbra. Com vista para a alameda de tílias do jardim botânico. Vim com poucos dias ser baptizado em Braga. O sino lateral da Igreja da Senhora-a-Branca tocava quando alguém nascia na cidade. Não me lembro do acidente em que fui projectado com poucos meses de vida pela janela do carro. Estávamos mesmo a chegar a casa. Lembro de me dizerem que tinha caído sobre umas almofadas. Algum anjo deve ter perdido uma moeda debaixo dessas almofadas.

 Quando decide atravessar para o mundo do lado de cá o anjo interpretado pelo Bruno Ganz tem consigo uma pedra arredondada que encontrou na caravana da trapezista. Uma pedra com uma metade de cada cor. Encontrei uma pedra igual no Porto na Praia da Luz. A Luz da Praia da Luz é a mesma Luz da minha casa em Braga. A Luz da Praia da Luz e da minha casa em Braga é um mistério de Lisboa. Coloquei a pedra que encontrei numa plaina antiga de madeira do meu pai. A linha da pedra na plaina transformou-se na linha do horizonte. Na linha do horizonte projectada pela pedra havia uma passagem para voltar da viagem a que o meu pai me conduziu pela mão quando nos veio buscar a Braga. Havia um leão à entrada. E três navios na linha do horizonte. Como as ilhas em frente a Camboinhas. Um dos navios cruzou a linha do horizonte e atracou na rua de Santo António. O navio atracado transformou-se numa casa do calendário do advento. As Ercílias são montanhas melíferas imaginárias. São uma espécie de auroras boreais. As Ercílias no Rio de Janeiro são montanhas de verdade. Quem chega do interior em direcção à costa quase não reconhece os picos das Ercílias desenhados pelas revoadas de pombos-correios. São no entanto a primeira coisa que avista em terra quem chega a casa por mar. As histórias dançam. E interligam a cidade. É todo um nome que dança quando é tocado por um braço de mar.

Chegar a Casa por Mar | João Catalão, Dezembro 2013


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